quarta-feira, junho 22, 2005

Segura e informada

Debruçada na sua varanda, sente-se segura e informada. Nada lhe escapa. Nem o caso que o vizinho da frente insiste em manter em segredo (embora ela já tenha contado ao sr. Rui do talho e este esteja a pensar em dizer à infeliz mulher do malandro) com uma ruiva pelos menos 15 anos mais nova do que ele. Sente-se segura e informada porque a ela nada lhe passa despercebido. Tem o olhar de um lince e a perspicácia de um comentador político. É o Nuno Rogeiro lá da rua. Aos 73 anos, Emília sente-se segura e informada. Não gosta que lhe roubem o caixote do lixo da porta de casa, mas já deu “dois berros aos homens do lixo” e sabe que eles lhe “ganharam medo”. Desconfia que há algo de estranho com a “Carlinha, que se mudou para o préio a semana passada”, embora tenha a certeza que é caso pouco grave – “Até acho que foi a mãe que lhe faltou”, sussura. Nada que se compare com o filho da Arminda do 76, que “de certeza que anda metido nas drogas”. Conhece-lhe os hábitos e garante que “quem entra sempre em casa já depois do sol nascer não pode andar a fazer boa… E a Arminda que sempre lhe deu tudo…” Dá-se bem com todos, embora a “galdéria do 48” não lhe inspire confiança – “diz-se que anda na má vida… tem 32 anos e não se lhe conhece homem…”. Já ela, sempre segura e informada, foi mulher de um homem só. Conheceu-o aos 15 e até aos 64 deu-lhe tudo. Foi-se com uma trombose. “Vontade de Deus”, diz. Por ela tinha ficado. Até porque “sempre foi um cavalheiro”. Não era como o Júlio, que desde que casou com a Sãozinha, “há mais de 50 anos”, não há dia que não chegue a casa com um cheiro a vinho que não se aguenta e descarregue na pobre coitada todas as frustrações de uma vida perdida. Não, o dela era “um senhor”. “Nunca me faltou com nada. Podíamos não ter que comer ao jantar, mas todas as semanas íamos dar pão aos patos do Campo Grande. Até que se foi…” Segura e informada, “Milinha, como ele me tratava… um querido…”, é rija como uma pedra. Trata todos por igual. “Até o Sr. Engenheiro do 2º andar, que só cá vem para ver como anda a mãe…”. Segura e informada, não dá confiança a ninguém. O Sr. António da mercearia bem lhe faz a corte, mas “já não é tempo para isso”. As suas diversões são outras. Os passeios diários ao Jardim da Estrela e a missa semanal. Segura e informada, retoca o baton que “uma amiga vende por catálogo” e apresta-se para sair. Quer aproveitar a fresca brisa do final da tarde para subir a Estrela. Desde os lances de escada segura e informada. Do outro lado do corredor, um piso abaixo do seu, D. Rosalina, do R/C Dt., sempre segura e informada espreita por uma frincha da porta e não aguenta o sussuro: “porca… já vais para a má vida!”

3 Comments:

At 10:39 da tarde, Anonymous Anónimo said...

A.L.Antunes II ?

 
At 5:57 da tarde, Blogger Marco Tábuas said...

delirei com "Nunca me faltou com nada. Podíamos não ter que comer ao jantar, mas todas as semanas íamos dar pão aos patos do Campo Grande". Fui, por momentos, um céptico comovido.

 
At 7:05 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Inveja! De nao conhecerem o sabor da ma vida! Tantos numeros, fuckingod.
Hoje è sexta, noite de mà vida.
Um abraço cà de Barça

 

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